Os servidores das instituições federais da Cultura, organizados nas suas associações e entidades representativas (Fórum da Cultura) se manifestaram no último mês sobre a preocupação do grupo com o possível leilão de imóveis públicos que o governo federal pretendia realizar no Rio de Janeiro. A carta traz inúmeras percepções sobre a forma de gestão cultural  e que merece a leitura.

Leia na íntegra: Manifesto dos Servidores_26ago2021

 

MANIFESTO DOS SERVIDORES FEDERAIS DA CULTURA EM DEFESA DO PATRIMÔNIO PÚBLICO E CULTURAL DO BRASIL

Nós, os servidores das instituições federais da Cultura, organizados nas suas associações e entidades representativas (Fórum da Cultura), vimos manifestar a nossa preocupação com o possível leilão de imóveis públicos que o governo federal pretende realizar no Rio de Janeiro.

Não é surpresa a maneira preconceituosa, equivocada e tacanha como os atuais dirigentes do governo federal tratam o setor da Cultura. Mas, nos últimos dias, recebemos a notícia da venda de alguns imóveis no Rio de Janeiro com um desgosto maior. Dessa vez, tendo como fonte somente algumas matérias jornalísticas, fomos surpreendidos com a notícia de um ¨feirão” de edifícios públicos e protegidos por lei que, além de serem referência para a história da arquitetura e da preservação do patrimônio cultural brasileiro, são também sede de instituições públicas da área da cultura, locais de guarda de arquivos, bibliotecas e outros acervos culturais nacionais, e também equipamentos culturais.

Ficamos estarrecidos com a notícia de que, na lista noticiada pela imprensa, o Palácio Gustavo Capanema estaria entre os imóveis da União a serem leiloados para a iniciativa privada. O imóvel foi projetado e construído entre os anos de 1937 a 1943 para sediar o Ministério da Educação e Saúde, que, posteriormente, se transformou na sede do Ministério da Educação e Cultura.

O prédio constitui um marco na arquitetura modernista brasileira, no qual merece destaque a concepção do projeto por consagrados arquitetos como Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, entre outros, que foram orientados por Le Corbusier, arquiteto ícone do modernismo. O prédio, tombado em 1948 pelo IPHAN, preserva elementos singulares do movimento modernista brasileiro como os jardins projetados por Burle Marx, os famosos painéis de Cândido Portinari, esculturas de Bruno Giorgi, Vera Janacopulus, Celso Antônio, dentre outras obras artísticas consagradas. Nos últimos anos, vem passando por obras de restauração de grande complexidade, que exigem soluções inovadoras para a segurança do ambiente de trabalho e dos acervos valiosos que abriga. Atualmente, a edificação está na lista indicativa do Patrimônio Mundial da UNESCO.

O Palácio Gustavo Capanema não é só uma estrutura física, fundamentais são os usos social e cultural para os quais foi destinado. Não é possível, portanto, separá-lo da função de sediar as instituições federais que promovem políticas públicas no setor da Cultura, como a Funarte, Iphan, Ibram, Fundação Cultural Palmares, Fundação Biblioteca Nacional, Representação da Secretaria Especial de Cultura. Antes do deslocamento das instituições para espaços alugados no Rio de Janeiro, havia registro de 42 mil visitantes/ano no prédio, acessando serviços, bibliotecas e arquivos, sem contar os que participavam de eventos e shows. Aliás, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a Biblioteca Euclides da Cunha (BEC/FBN), por exemplo, funcionam ali desde sua inauguração em 1945.

Lembramos que o Palácio Gustavo Capanema não é o único! Outro imóvel ameaçado de alienação é o Prédio Anexo da Fundação Biblioteca Nacional, que atualmente abriga mais de 1 milhão de obras bibliográficas e documentais, que integram o patrimônio bibliográfico documental nacional. Ressalta-se que o Prédio Anexo passou, recentemente, por obras estruturais que custaram cerca de 21 milhões aos cofres públicos, sendo esse recurso originário do Fundo de Direitos Difusos destinados à Fundação Biblioteca Nacional especificamente para a execução de obras no imóvel, com a finalidade de preservação do imóvel e, de forma mediata, do acervo bibliográfico e documental.

Estamos tratando de arquivos e bibliotecas federais que foram tombados pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural do Estado do Rio de Janeiro (Inepac), e desse modo, não podem ser transferidos do estado e devem permanecer nos seus locais de origem. Os referidos acervos são consultados por grande número de pesquisadores, estudantes e público em geral, tendo enorme valor simbólico, cultural, científico, bem como, econômico para a cidade do Rio de Janeiro.

A repercussão negativa da venda do Palácio Gustavo Capanema no “feirão” de imóveis da União mostrou que diversos grupos da sociedade estão atentos para a tentativa do Ministério da Economia de desvalorizar o que é público e o significado do patrimônio cultural brasileiro. Vale lembrar que é a mesma desvalorização que tem como alvo as instituições federais da Cultura, enfraquecidas pelos ataques de seus dirigentes aos planos, programas e ações voltados para os direitos da população às artes, à cultura e à memória.

Desde a extinção do Ministério da Cultura, mas principalmente no atual governo, sob o comando do Ministério do Turismo, enfrentamos problemas estruturais em todas as instituições: ausência de diretrizes para as políticas culturais em conformidade com o previsto na Constituição Federal; falta de competência técnica e administrativa dos atuais gestores; ausência de planejamento adequado para preservar os acervos culturais, nos quais se incluem os edifícios tombados.

Junto a isso, os servidores do setor são uma das categorias mais afetadas pelo atual governo, onde a precarização das estruturas técnico-administrativas e a conduta de assédio institucional têm sido percebidas mais fortemente (Relatório sobre assédio institucional nas instituições do executivo federal ligadas à pasta da Cultura).

Dentre os possíveis impactos negativos da alienação ou cessão da gestão dos imóveis em questão, podemos antever: a descaracterização dos projetos originais e usos dos edifícios, a realização de obras irregulares, a promoção de danos aos imóveis, a privatização do acesso e fruição, a dispersão de obras de arte e documentos.

Ademais, o grande esforço humano e financeiro que vêm sendo dispendido pela União na restauração do Palácio Gustavo Capanema, por exemplo, coloca uma série de perguntas sobre os motivos que estariam por trás da venda de um emblema da nossa arquitetura.

Estamos diante de um governo com graves problemas de gestão, que desconsidera a importante contribuição dos servidores da Cultura para o planejamento das atividades precípuas da Secretaria Especial da Cultura/Mtur e instituições vinculadas, como a Funarte, Iphan, Ibram, Fundação Casa de Rui Barbosa, Fundação Cultural Palmares, Fundação Biblioteca Nacional.

Como servidores da área, acumulamos o conhecimento técnico e administrativo para identificar, mensurar, avaliar e executar outras tantas tarefas que se referem às condições adequadas para o pessoal e para os acervos documentais, arquivísticos, bibliográficos, fonográficos, fotográficos, audiovisuais de que somos responsáveis. Apesar disso, nunca somos convidados para quaisquer debates prévios sobre este assunto.

Também estamos cientes de que, no contexto da pandemia de Covid-19, ficou ainda mais urgente e prudente um aprofundamento sobre a gestão de imóveis públicos. Diante das novas dinâmicas socioeconômicas dos nossos centros urbanos, inúmeros desafios de planejamento e gestão urbanística devem ser encarados, sobretudo com os prédios vazios em decorrência da ampliação da modalidade do trabalho remoto aos trabalhadores de instituições públicas e privadas.

É justamente pela complexidade desse debate que precisamos estar envolvidos, junto com representantes da sociedade civil. Sem participação social, ampla e irrestrita, nas discussões que precedem a tomada de decisão, a alienação e a destinação de bens que pertencem a todas e a todos os brasileiros é medida autoritária e que parece estar com foco distinto ao do interesse público e coletivo.

Por fim, nos somamos aos demais movimentos advindos da sociedade, expressando o nosso apoio aos profissionais, entidades de classe, movimentos sociais e parlamentares que, nos últimos dias, que vêm se esforçando na defesa do patrimônio público e da relevância nacional de alguns edifícios e dos acervos culturais que eles abrigam no município do Rio de Janeiro.